Reflexões da Profª Zélia R. Nolasco responde à questão de
como pensar em uma literatura e uma identidade sul-mato-grossense, se a pouco
tempo, existia um só: o Estado de Mato Grosso. Transcrevo o trecho em que a
Profª Zélia reflete sobre literatura e identidade sul-mato-grossense.
Literatura
sul-mato-grossense: reflexões
Zélia R. Nolasco
*O estudo de literatura é compreendido como uma grande
reserva de cultura e também como ideal de formação humana, daí o fato de
ressaltar que o professor de literatura era visto como um "professor de
civilização". Desse modo, refletir sobre literatura e identidade
sul-mato-grossense é reforçar que o conhecimento literário produzido
historicamente ocupa na prática cultural um lugar de privilégio, pois se coloca
como objeto de interrogação, de dúvida e de pesquisa. Diante disso, como pensar
em uma literatura e uma identidade sul-mato-grossense, se a pouco tempo,
existia um só: o Estado de Mato Grosso?
Com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, no ano de
1977, observa-se o início de uma busca desesperada por uma identidade. Ao
analisarmos esse movimento, parece-nos que uma decisão que foi tomada pensando
na afirmação de um povo, simplesmente, tomou o caminho oposto, passando a negar
esse mesmo povo. Ou ainda, e o mais provável é que esse mesmo povo tenha se
sentido negado, passando a ser um corpo estranho em sua própria terra. É como
se de repente, a população do Estado tivesse perdido o chão simbólico que já
existia e tudo tivesse ficado para o outro, o antigo, o Estado de Mato Grosso,
o que permaneceu com a tradição histórica e literária, pelo menos na concepção
de alguns. Sendo assim, o novo Estado de Mato Grosso do Sul teria que criar ou
recriar uma nova identidade para o seu povo?. Temos duas possibilidades de
análise. Em primeiro lugar, se formos pela concepção de que o Estado é um
recém-nascido, realmente, a opção será a de criar uma identidade, uma história
e também uma cultura. Em segundo lugar, se a concepção for a de que o Estado
apenas foi dividido em partes distintas: Sul e Norte, não há porque criar
aquilo que o povo já tem, pois o fato de ter o seu território dividido não quer
dizer que tenha deixado de existir, que tenha perdido sua história, sua
cultura, sua memória.
A segunda possibilidade parece-me a mais sensata, não
vejo motivos para que os sul-mato-grossenses tenham tamanha crise de
identidade. Até porque os aspectos históricos culturais e identitários não se
mudam simplesmente por uma decisão político-administrativa. Acredito que essa
preocupação e crise de identidade fazem parte do mundo de algumas pessoas,
principalmente, daquelas que no momento da divisão do então Estado de Mato
Grosso já tinham mais que vinte anos. Faço essa afirmação, pois conforme
Melchior de Vogué: "O século começa sempre para os que têm vinte
anos" (VOGUÉ, 1950, p.43). De repente, aí está a explicação: as pessoas
com mais idade se sentiram desterradas com a divisão do Estado enquanto que
esse sentimento não é perceptível entre as pessoas mais jovens, elas não
apresentam essa crise de identidade, simplesmente, são sul-mato-grossenses.
Aliás, na busca por uma afirmação da cultura e da
literatura sul-mato-grossense estão duas reivindicações: uma, do Conselho
Estadual de Educação do MS, Parecer nº. 235/2006, sobre a inserção da cultura
sul-mato-grossense na Educação Básica do Sistema Estadual de Ensino; a outra,
uma audiência pública: A literatura sul-mato-grossense, na Câmara Municipal de
Dourados, no dia vinte e três de outubro de 2009, para se discutir o ensino da
mesma nas escolas da rede pública. Mas, bem sabemos que: "Uma identidade
nunca é dada, recebida ou atingida" (DERRIDA, 1996, p.53). Logo, por mais
que a cultura e a literatura sul-mato-grossense sejam estudadas e divulgadas
nas escolas, isso não fará com que os estudantes se sintam mais
sul-mato-grossenses em função disso. Se bem que o que está embutido,
principalmente, na segunda reivindicação, é a publicação de escritores e a
produção de um mercado para os livros aqui produzidos com incentivo do Governo
do Estado e, também, a criação de uma disciplina de literatura
sul-mato-grossense.
O investimento em cultura é sempre muito positivo e a
literatura é a mais viva expressão cultural de um povo. Porém, é importante
ficarmos atentos a essa última proposta, pois ao criarmos uma disciplina de
literatura sul-mato-grossense, abre-se a possibilidade de que seja criada
também uma disciplina de literatura paulista, outra de literatura paranaense,
outra de literatura gaúcha, e assim, sucessivamente, cada Estado com sua
literatura. Já imaginaram, no caso do MS, se cada imigrante que aqui se
encontra quiser que a sua literatura de origem seja ministrada nas escolas para
seus filhos? Será que não estamos caminhando para um apartheid
literário/cultural? Será que estudar os escritores regionais dentro da
disciplina de Literatura Brasileira não basta? Enfim, o que move o mundo são as
perguntas e não as respostas, mas um bom caminho para encontrá-las é através da
leitura.
*Professora zelianolasco@uems.br
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